Introdução
Em Setembro de 1963, Marvel Comics publica o quadrinho X-men Volume 1, onde nos é apresentado o grupo que dá nome a revista. Composto primariamente por adolescentes, a equipe de mutantes vem com a codificação de diversos movimentos sociais, entre eles o movimento negro e a discriminação judaica. Inspirado por X-men e outros quadrinhos americanos, em Julho de 2014 Kohei Horikoshi começa a publicar My Hero Academy (MHA) na revista Shonen Jump. O mangá tem um sucesso estrondoso, sendo lançado por uma década até terminar em Agosto de 2024.
O mundo de MHA é composto por pessoas com habilidades especiais chamadas Quirks (peculiaridades, numa tradução literal) e onde o heroísmo e vilania se tornaram algo comum. O mangá segue a história de Izuku Midoriya, um rapaz sem Quirk que tem o sonho de se tornar um grande herói por sua admiração pelo herói numero 1, All Might.
Nesse artigo, quero explorar alguns aspectos e problemáticas que a obra apresenta, lembrando que isso é um exercício crítico e não uma análise da qualidade do mangá, que é um dos meus favoritos. Aviso também que spoilers serão dados para a obra inteira, então a discrição é pedida pelo leitor.
Sociedade de heróis
A sociedade passou a rodar ao redor de uma indústria de heróis, como são chamados aqueles que tem o direito de usar Quirks em ambientes públicos. Heróis viram então celebridades, participando de um ranking, comerciais, abrindo empresas, etc.. Essa sociedade é composta de uma maneira fascistoide mesmo em seus objetivos “positivos”.
A super hierarquização do indivíduo (Um literal ranking de heróis), colocando aqueles que têm a sanção do Estado como tendo liberdades acima das liberdades civis (Apenas heróis podem usar suas quirks em público), assim como a definição arbitrária do que é um vilão e a associação visceral com o capitalismo (Como a quantidade de produtos relacionados ao heróis) são características fascistas. Trazendo para o contexto brasileiro, temos uma extrema direita amante de títulos militares que enfrentam bandidos enquanto defendem empresários.
Vemos como heróis têm permissão de usar “força maior”, executando “monstros” e só não fazendo isso mais a fundo por medo da reação do público. Ninguém vai ser julgado pela morte do Twice, assim como ninguém vai ser julgado pelas mortes de Himiko Toga e Tomura Shigaraki. Inclusive, acho importante falar da Liga dos Vilões em sua própria parte.
Liga dos Vilões
A Liga dos Vilões são a representação de uma vilania no mundo de MHA. Nela vemos pessoas pobres, queer, neuro divergentes e mutantes tendo que se tornar “vilões” para sobreviver em um mundo que não só não os aceita, mas ativamente ataca seus similares. Assim como diversos exemplos de sociedades fascistas na vida real, isso é um sinal de psicofobia e homofobia.
Psicofobia é o ódio a pessoas neuro divergentes e com transtornos e deficiências mentais, sociais ou intelectuais. No mundo real há um histórico desse ódio, influenciando até hoje a maneira como essas pessoas são tratadas como incapazes ou inválidas, frequentemente sendo retiradas da sociedade (seja pelo hospício ou pela prisão) quando não diretamente mortas como Twice foi morto por Hawks.
Homofobia é usado aqui como um termo guarda-chuva para falar do ódio a pessoas LGBT como um todo. Tem uma história longa que envolve a colonização europeia (e principalmente inglesa) no mundo inteiro. Pessoas LGBT são maltratadas, expulsas de casa, prostituídas quando não mortas por seus familiares em casa. É possível ver algo parecido em MHA quando pessoas LGBT que se alinham a visão da sociedade são tratadas como heróis, mas aqueles que não se alinham aquela sociedade, como por exemplo Magne, são vistas como vilões.
Mas acredito que o ódio mais estabelecido pela história é o racismo em relação a mutantes.
Racismo
É difícil falar sobre o racismo em MHA, mas é possível senti-lo se você sabe o que está procurando. Pessoas com quirks mutantes (que mudam de alguma maneira o corpo do usuário) sendo tratadas levemente pior do que equivalentes não mutantes. Em um momento da série, vemos uma mutante sendo negada entrada em um abrigo por conta de seu tamanho, por exemplo.
Inclusive em um ponto da história, mutantes organizam um protesto, se rebelando contra as condições sofridas contra mutantes, protesto esse que foi rechaçado pelo grupo de heróis com a explicação de ser uma “turba selvagem e sem controle”. Protestos na vida real, entretanto, são respostas a problemas sociais, estruturais e crônicos, quando todas as outras linguagens já foram tentadas e falharam. Nas palavras de Martin Luther King, “O protesto é a linguagem daqueles que não são escutados”.
Apesar de apresentar características fascistas, o mundo de MHA na verdade se apresenta em um mundo de neoliberalismo rampante. e que, assim como partidos neoliberais em tempos de paz, lutam contra o fascismo e conservadorismo em suas formas mais claras
Conservadorismo
Mesmo em uma sociedade em que todos têm superpoderes, existem aqueles que não só negam a necessidade de quirks, como também aqueles que desejam a volta de um mundo em que quirks não existam. Esse é o trabalho de Overhaul, uma representação do reacionarismo e conservadorismo no mundo de MHA.
Conservadorismo é a visão política de que os movimentos de progresso na sociedade são não apenas nocivos para a sociedade, mas muitas vezes danosos. Direitos LGBT, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores, tudo isso entre outros foram conquistas feitas apesar da luta contrária de grupos conservadores.
A luta contra o conservadorismo é uma das principais lutas para qualquer movimento radical, pois utilizam de estéticas revolucionárias ou anti-sistema para mobilizar as pessoas enquanto abusam impunemente das regras do sistema. Torna-se necessário então saber diferenciar a estética radical do conservador e a estética radical revolucionária.
Conclusão
Em conclusão, a sociedade de MHA é uma que pode parecer ótima de se viver em uma primeira vista, mas no momento em que se faz uma análise mais aprofundada, é possível ver não apenas falhas, mas como essa sociedade pode ser danosa para pessoas, principalmente pessoas marginalizadas.
Isso não significa que a obra é falha ou que as coisas apontadas são negativas, mas sim uma análise sobre como seria viver nesse mundo e dos problemas que seriam encontrados fora do ambiente da escola. Em seu spin-off “My Hero Academy: Vigilante”, é possível ver uma visão mais “pé no chão” dessa sociedade e é uma leitura recomendada para todo fã de MHA.
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